sábado, 9 de fevereiro de 2019

António da Costa Neves: "Nunca houve tanta gente a escrever e a publicar como agora!"


António da Costa Neves, que também usa o pseudónimo literário E. S. Tagino, nasceu em Grândola e reside em Almada há mais de quarenta anos. O autor é licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, durante anos, publicou regularmente poesia em diversos jornais e revistas nacionais.

Com Mataram o Chefe de Posto, Prémio Literário Cidade de Almada - 2006, iniciou uma frutuosa incursão pelo romance, que conta hoje uma dezena de títulos, muitos dos quais igualmente premiados. Um Certo Incerto Alentejo, Prémio Literário Joaquim Mestre – 2017, publicado em dezembro de 2018, é o seu prémio literário mais recente

Imaginativo e multifacetado nas diversas modalidades e temáticas que tem abordado, entre estas ressalta o romance histórico. O Amor nos Anos de Chumbo; Adamastor e O Implacável Cerco de Almada definiram um estilo que alcança, agora, a sua expressão máxima em Sangue de Portugal.

Adamastor, considerado, hoje, uma obra de referência no panorama dos estudos camonianos, foi objeto de um seminário na Universidade de Coimbra e de uma conferência na Universidad Complutense de Madrid. Também Mea Culpa!, Prémio Literário Paul Harris – 2007, foi selecionado, em 2010, como obra de referência do Concurso Nacional de Leitura do Ensino Secundário

Como e quando começou a interessar-se pela literatura?

O meu interesse pela leitura começou desde cedo. Sempre me vi a ler, em minha casa havia uma Cartilha Maternal, por onde minha mãe tinha aprendido a ler, e foram os seus textos e poemas os primeiro que li e decorei. Sei que por volta dos cinco anos, quando fui para a “escola paga”, algo muito parecido com as creches de hoje, já lia como um papagaio. A aritmética foi mais difícil, aprendi a tabuada, como todas crianças da minha geração, mediante uma cantilena que ainda hoje ressoa no meu ouvido. Depois de passar pela fase dos livros de quadradinhos, comecei por volta dos 12 anos a interessar-me pelos livros de caw-boys e, logo a seguir, pelos policiais e, durante cerca de dois anos, li uma média de um livro por dia. Valha a verdade que eles também não eram muito grandes. A grande literatura talvez tenha começado com Jorge Amado. Recordo-me de ter lido a Trilogia do Cacau muito cedo: Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge de Ilhéus, que produziram em mim um verdadeiro encantamento. E aí pelos 15 anos, Gabriela Cravo e Canela, que estava proibido, e A Selva, do Ferreira de Castro. Depois disso nunca mais parei. Entretanto, lia também Salgari e Walter Scott, Alves Redol e Fernando Namora, enfim tudo o que apanhava. Curiosamente o primeiro prémio que ganhei foram 50 livros, do antigo Secretariado Nacional de Informação, por ter sido considerado pelo Ministério, o melhor aluno do ano.

O que despoletou o seu interesse pela literatura?

Essencialmente, pela leitura dos grandes romances, que minha mãe todas as noites, capítulo a capítulo, ia lendo, ao serão, para mim e meu pai. Curiosamente, meu pai que era mestre numa grande fábrica de cortiça, adquiriu o hábito de ir contando aos colegas, operários e aprendizes, a maior parte deles analfabetos, capítulo a capítulo, as peripécias do Conde de Monte Cristo, do Jean Valjean, do Dr. Jivago... Muitos anos mais tarde vim a saber que, nas fábricas de Cuba e da Virgínia, os enroladores de tabaco tinham “lectores”, pagos pelos próprios operários, sentados num palanque, para lhes lerem livros enquanto trabalhavam. Há gravuras e fotografias nos jornais da época. Nessa altura havia poucos livros e um dos principais, lido e relido dezenas de vezes, foi, precisamente, o Conde Monte Cristo, que muitos já sabiam de cor e entoavam, a cada nova leitura, em conjunto com o “lector”. A marca de charutos Monte Cristo é, precisamente, uma homenagem dos enroladores de charutos cubanos a Alexandre Dumas, a quem solicitaram licença e que este, já no fim da vida, lhes concedeu.

Como nasceu a paixão pela escrita?

Não lhe chamarei paixão. Não sou um obcecado e passo muito bem sem a escrita. Outro tanto não direi da leitura. De facto, depois de ter lido durante 50 anos algumas centenas largas de livros dei comigo a pensar que também seria capaz de inventar e escrever história. Por isso mesmo, sou um escritor tardio, que só começou a escrever a partir dos 60 anos, quando me reformei. Contudo, durante anos fiz regularmente poesia, que ia publicando aqui e ali, em jornais e revistas. Em 2006, porém, vi-me subitamente sem fazer nada e, ao fim de dois meses de inatividade, lembrei-me dum episódio misterioso que minha sogra me tinha contado, uns anos antes, e imaginei que poderia dar uma boa peça de teatro. Como tinha feito teatro amador na minha juventude, pensei começar por aí. No entanto, a trama, que se passava em Moçambique, rapidamente me desviou para a minha experiência pessoal de combatente durante a Guerra Colonial, dando origem ao meu primeiro romance, Mataram o Chefe de Posto, com o qual ganhei o Prémio Literário Cidade de Almada – 2006, e que me abriu as portas da edição.

O que mais o atrai quando escreve?

Atrai-me a possibilidade de, em cada livro, criar um mundo paralelo e original e de o povoar com personagens das quais tenho o destino nas mãos. Muito embora, em dados momentos, algumas consigam ganhar vida própria e imporem-se, condicionando, a minha vontade. No entanto, o escritor é sempre um deus menor que não concede às suas criaturas a capacidade absoluta do livre-arbítrio. Daí não me espantar a particular apetência que as pessoas têm pelo mundo virtual.

Por que motivo resolveu escrever livros?

Porque considero o romance - falo do romance clássico, que conta uma história através duma narrativa romanesca, semeada de escolhos e contradições e protagonizada por pessoas singulares – o melhor veículo cultural para cristalizar sentimentos, afetos e paixões, dar prazer e evasão às pessoas.

Qual foi a obra que mais gostou de escrever e porquê?

É sempre a última. Talvez porque seja a que está ainda fresca no meu espírito. No caso de Sangue de Portugal, foram três anos intensos a trabalhar no projeto. Três anos de muita pesquisa, de muitas leituras e de muitas notas. O romance histórico - assumidamente quatro dos dez que já publiquei – tem a particularidade de viver, como nenhum outro, o contraditório entre o real e o ficcionado. E o autor deste género não pode fugir à circunstância histórica específica em que inscreve a sua obra, sob pena de não estar a escrever um romance histórico, mas algo que pode variar entre a literatura fantástica e a utopia. Sangue de Portugal é, por outro lado, um romance muito ambicioso. Não só porque abarca o maior conflito interno da nossa história como tem a pretensão de contar, através das trajetórias pessoais de três amigos, uma convulsão social e política que durou seis anos, mudou o regime e as mentalidades e introduziu o constitucionalismo em Portugal.

Em que é que se inspira para escrever um livro?

Não tenho um padrão. Às vezes numa história que me contaram e me tocou, como no Mataram o Chefe de Posto; outras, num sentimento indelével ou numa memória distante, como em Mea Culpa! e Abaixo de Cão; outras ainda, numa frase apenas, como em O Pequeno Incendiário. No caso dos romances históricos Adamastor e este Sangue de Portugal, nem sequer derivam de uma inspiração pessoal, mas da sugestão do meu editor, Luís Corte Real, que descobriu em mim qualidades suficientes para este tipo de romance. Quanto aos O Amor nos Anos de Chumbo e O Implacável Cerco de Almada, simplesmente porque quis escrever sobre Grândola, onde nasci, e sobre Almada, onde vivo há mais de quarenta anos.

Em que momentos do dia escreve habitualmente?

Gosto especialmente de escrever de manhã, mas também escrevo à tarde. À noite é que não, porque já não tenho vista para tal. Para além de que gosto de cinema, debates e futebol e a noite é mais propícia para isso.

O que desencadeia a escrita em si?

Provavelmente, o tédio! Contudo, agora, que escrevo com alguma regularidade, tenho sempre muitos livros na estante à espera de uma oportunidade. Minha filha costuma oferecer-me livros regularmente e porque também é uma grande leitora está sempre a par das novidades. Normalmente, após a publicação de um livro, aproveito para dar vazão à leitura. Desde 15 de Dezembro, quando publiquei Um Certo Incerto Alentejo, até agora, já li os dois últimos volumes da série de O Cemitério dos Livros Esquecidos, do Carlos Ruiz Zafón, o Diz-me Quem Sou e a História de um Canalha, de Julia Navarro, A Filha do Barão, de Célia Correia Loureiro, e o Deixa o Grande Mundo Girar, do Colum McCann. E qualquer um deles tem mais de 500 páginas. Depois, há um momento em que a leitura já não me basta e então a escrita impõe-se. Gosto também muito de poesia, mas desde a publicação, em 2017, dos meus Trinta Sonetos Triviais não escrevi mais nada.

Quais são as suas referências literárias?

Os clássicos, sem dúvida. Volto sempre a eles. E já passei esse gosto a minha filha, que está neste momento a reler Os Maias. Outro dia surpreendeu-me ao afirmar que só agora estava a percebê-lo verdadeiramente porque, entretanto, tinha lido o meu Sangue de Portugal. Gosto especialmente do Eça, mas gosto de muitos outros. Se fizesse uma lista de nomes, Cervantes estaria lá, com certeza, mas estariam lá tantos que a lista seria interminável. E até estariam anónimos como o autor de O Lazarilho de Thormes, o mais picaresco dos livros que conheço.

Como vê o mundo atual da literatura em Portugal?

Demasiado focada em duas figuras tutelares, embora controversas: José Saramago e Lobo Antunes, de quem li tudo. Depois, há ainda os escritores mediáticos, que as televisões promovem, e os que uma certa crítica aplaude. No meio disso tudo, de vez em quando emerge um escritor como Mário de Carvalho ou Agustina. E, no entanto, nunca houve tanta gente a escrever e a publicar como agora! Talvez daqui a cinquenta anos seja possível fazer um balanço. Falar sobre o presente é sempre a melhor maneira de nos enganarmos.

Para quando um novo projeto editorial?

Tudo depende da aceitação deste Sangue de Portugal. Gostaria de lhe dar continuidade. Há quem diga que este período, de 1028 a 1834, que abordo no livro, foi apenas o tempo da 1.ª Guerra Civil. E de facto, o que veio a seguir foi tão conflitual como esta, agora já com as diversas fações do liberalismo a digladiarem-se no Parlamento, nos jornais, nos quarteis, nos clubes e na rua. Gostaria de prosseguir o tema até à Regeneração: abordar a Revolução de Setembro e o Setembrismo, Passos Manuel, a ditadura de Costa Cabral, A Maria da Fonte e a Patoleia… De qualquer modo, tenho dois livros em carteira, até pode ser que venha, entretanto, a publicar qualquer um deles.

Agora que já conhece a revista Livros & Leituras, que opinião tem deste projeto editorial sem fins lucrativos?

Tudo o que se faça para a divulgação do livro e da leitura terá sempre o meu total apoio. Quando os promotores o fazem, em acréscimo, sem fins lucrativos, então os meus encómios são redobrados. Não deixarei, doravante, de acompanhar tudo o que vão fazendo.

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