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domingo, 10 de março de 2019

Para Alberto Caeiro, escrever era deambular sem se preocupar com a esquerda e a direita



Somos sonhados, apetece dizer, quando falamos sobre artes e artistas, ou sobre escritores e literatura. Refletimos algo mais alto, que aparece no que criamos e escrevemos.

Somos apanhados de surpresa, captados num momento das nossas existências, e quanto mais «espontânea» é a arte, quanto mais ela nos mostra indefesos perante o destino, mais ela é elevada.

A arte é o nosso deus desconhecido, e no caso da literatura estamos perante uma arte intelectual – o intelecto desvia-nos em grande parte da espontaneidade, da pureza da origem.

Para Fernando Pessoa, altamente intelectual, o mestre era Alberto Caeiro, porque, de todos os seus heterónimos, era este o mais «espontâneo», o que estava mais perto da origem do mundo, que está na natureza. Alberto Caeiro, o pastor que escrevia com erros, que não intelectualizava o que escrevia, ou, mais precisamente, intelectualizava o menos possível, era por um lado uma «vítima» de algo mais alto, que o ultrapassava (a inspiração de um momento), mas era por outro lado senhor de cada palavra e de cada verso que escrevia; era inteiro, porque não se dividia em pensamentos artificiais nem em filosofias vãs – tudo nele era essencial, como o sol, a lua, os campos, as flores. Ele, de certo modo, era o próprio sol, a própria lua, como era os campos e as flores. Ele fazia literatura, mas era como se a não fizesse, ao negar radicalmente os deuses e o transcendente era como se a si mesmo se assumisse como deus, e abolindo o tempo se fazia eterno. E realmente, ao lermos os seus versos, falsamente ingénuos, é como se lêssemos a própria eternidade que existe nos elementos da natureza; Caeiro procurava plasmar-se com esta, ao escrever – e escrever era para ele deambular, sem se preocupar com a esquerda e a direita, o mais alto e o mais baixo; escrever era o puro ato de respirar, sem pensar que se respira.

Claro que este heterónimo não deixava de ser um artifício de Fernando Pessoa, talvez o mais elaborado de todos – atrás da ingenuidade dele, estava a arte do ortónimo, que era dotado da mais sublime capacidade de «trabalhar» os mistérios que lhe eram enviados do além.

Jorge Chichorro Rodrigues

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