Somos
sonhados, apetece dizer, quando falamos sobre artes e artistas, ou sobre
escritores e literatura. Refletimos algo mais alto, que aparece no que criamos
e escrevemos.
Somos
apanhados de surpresa, captados num momento das nossas existências, e quanto mais
«espontânea» é a arte, quanto mais ela nos mostra indefesos perante o destino,
mais ela é elevada.
A
arte é o nosso deus desconhecido, e no caso da literatura estamos perante uma
arte intelectual – o intelecto desvia-nos em grande parte da espontaneidade, da
pureza da origem.
Para
Fernando Pessoa, altamente intelectual, o mestre era Alberto Caeiro, porque, de
todos os seus heterónimos, era este o mais «espontâneo», o que estava mais
perto da origem do mundo, que está na natureza. Alberto Caeiro, o pastor que
escrevia com erros, que não intelectualizava o que escrevia, ou, mais
precisamente, intelectualizava o menos possível, era por um lado uma «vítima»
de algo mais alto, que o ultrapassava (a inspiração de um momento), mas era por
outro lado senhor de cada palavra e de cada verso que escrevia; era inteiro,
porque não se dividia em pensamentos artificiais nem em filosofias vãs – tudo
nele era essencial, como o sol, a lua, os campos, as flores. Ele, de certo
modo, era o próprio sol, a própria lua, como era os campos e as flores. Ele
fazia literatura, mas era como se a não fizesse, ao negar radicalmente os
deuses e o transcendente era como se a si mesmo se assumisse como deus, e
abolindo o tempo se fazia eterno. E realmente, ao lermos os seus versos, falsamente
ingénuos, é como se lêssemos a própria eternidade que existe nos elementos da
natureza; Caeiro procurava plasmar-se com esta, ao escrever – e escrever era
para ele deambular, sem se preocupar com a esquerda e a direita, o mais alto e
o mais baixo; escrever era o puro ato de respirar, sem pensar que se respira.
Claro
que este heterónimo não deixava de ser um artifício de Fernando Pessoa, talvez
o mais elaborado de todos – atrás da ingenuidade dele, estava a arte do
ortónimo, que era dotado da mais sublime capacidade de «trabalhar» os mistérios
que lhe eram enviados do além.
Jorge
Chichorro Rodrigues
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